“Que sentido pode ser dado à educação, como um todo, dentro da sociedade?”

Da resposta a essa pergunta segue-se uma compreensão da educação e do seu direcionamento.

Para alguns a educação é responsável pela direção da sociedade; para outros, a educação reproduz a sociedade como ela é, e para o terceiro grupo, a educação é uma instância mediadora de uma forma de entender e viver a sociedade. Para eles a educação nem salva nem reproduz a sociedade, mas pode e deve servir de meio para a efetivação de uma concepção de sociedade. Esses três grupos podem ser expressos pelos seguintes conceitos: educação como redenção; educação como reprodução e educação como um meio de transformação da sociedade. Essas são as três tendências filosófico-políticas para compreender a Educação que se constituíram ao longo da prática educacional. Filosóficas, porque compreendem o seu sentido; e políticas, porque constituem um direcionamento para sua ação.

1. Educação como Redenção da Sociedade

Modo ingênuo de ver a sociedade, que vê a educação como uma instância quase que exterior à sociedade, e deve adaptar o indivíduo à sociedade. É chamada por Saviani de “teoria não crítica da educação”, pois não leva em conta a contextualização crítica da educação dentro da sociedade da qual ela faz parte. Vê o magistério como sacerdócio. A organização da sociedade é tida como “natural” e a-histórica. O principal representante dessa tendência é João A. Comênio (1592-1670), educador do século XVII, nascido na antiga Morávia (hoje República Tcheca). Sua obra mais conhecida é a Didática Magna (há uma tradução excelente da Fundação Calouste Gulbekian).

Para Comênio, “pela educação das crianças e dos jovens a sociedade será redimida”. Ele não crê nas possibilidades de reequilibrar a sociedade a partir dos adultos e acredita mesmo que sua “arte de ensinar” não servirá para eles. Sobre isto nos diz: “Com efeito, para transplantar árvores velhas e nelas infundir fecundidade, não basta a força da arte. Portanto, as mentes simples e não ainda ocupadas e estragadas por vãos preconceitos e costumes mundanos são as mais aptas para amar a Deus” (p. 65).

Essa concepção perdurou por épocas, na verdade, até hoje. Os enciclopedistas da Revolução Francesa (pedagogia tradicional - acreditavam na redenção da sociedade pela educação das mentes) e os pedagogos do final do século passado (pedagogia nova - acreditavam na redenção da sociedade através da formação da convivência entre as pessoas, a partir do atendimento às diferenças individuais de cada uma) continuaram com essa mesma compreensão. Muitos, ainda hoje, consideram seus atos pedagógicos como atos isentos de comprometimentos com a política e totalmente voltados para a redenção da sociedade.

2. Educação como Reprodução da Sociedade

A educação faz, integralmente, parte da sociedade e a reproduz. A educação é uma instância dentro da sociedade e exclusivamente a seu serviço. Não a redime de suas mazelas, mas a reproduz no seu modelo vigente, perpetuando-a, se for possível. Esta tendência é “crítica” e “reprodutivista”, pois vê a educação somente como elemento destinado a reproduzir seus próprios condicionantes. Saviani a denomina esta tendência de “teoria crítico-reprodutivista” da educação.

Vários autores são representantes desta tendência, como Pierre Bourdieu e Claude Passeron, mas principalmente Louis Althusser, em seu livro Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado(Lisboa, Editorial Presença, s/d).

Esta tendência não se traduz numa pedagogia, ou seja, ela não estabelece um modo de agir para a educação, mas apenas demonstra como atua a educação dentro da sociedade e não como ela deve atuar.

Althusser faz, a partir de pressupostos marxistas, um estudo sobre o papel da escola como um dos aparelhos do Estado, como uma das instâncias da sociedade que veicula a sua ideologia dominante, para reproduzi-la. A escola é o instrumento criado para otimizar o sistema produtivo e a sociedade a que ele serve, pois ela não só qualifica para o trabalho, socialmente definido, mas também introjeta valores, que garantem a reprodução comportamental com a ideologia dominante. Tornar um aluno mais competente tecnicamente não é o suficiente. Ele deve tornar-se mais competente para manter uma sociedade determinada. Junto ao “saber” vem acoplado o “saber interpretar” a sociedade do ponto de vista dos interesses da classe dominante. O termo “formação”, muito utilizado para definir os fins da atividade escolar, expressa bem o papel de reprodutora do sistema que desempenha a escola. “Formar” quer dizer “dar forma a”, padronizar segundo um modelo.

Para Althusser o poder dominante é tão forte na sociedade, que não há possibilidade nenhuma para a escola de trabalhar pela sua transformação. Ele acrescenta à perspectiva reprodutivista um pessimismo derrotista, claro no seguinte parágrafo:

“Peço desculpas aos professores que, em condições terríveis, tentam se voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas em que este os encerra, as armas que podem encontrar na história e no saber que ‘ensinam’. Em certa medida são heróis. Mas são raros e quantos (a maioria) não têm sequer vislumbre de dúvida quanto ao trabalho que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer; pior, dedicam-se inteiramente e em toda consciência à realização desse trabalho (os famosos métodos novos). Têm tão poucas dúvidas, que contribuem até pelo seu devotamento a manter e a alimentar a representação ideológica da Escola que a torna hoje tão ‘natural’, indispensável-útil e até benfazeja aos nossos contemporâneos, quanto a Igreja era ‘natural’, indispensável, para os nossos antepassados de há séculos” (p.67-8).

Então, façam o que fizerem os professores - lutem, melhorem suas práticas, melhorem seus métodos e materiais - tudo será em vão, já que sempre reproduzirão a ideologia dominante e, pois, a sociedade vigente. Aqui, também, a organização da sociedade é tida como “natural” e a-histórica.

3. Educação como Transformação da Sociedade

Esta tendência tem como perspectiva compreender a educação como mediação de um projeto social. Ela nem redime nem reproduz a sociedade, mas serve de meio, ao lado de outros meios, para realizar um projeto de sociedade, que pode ser conservador ou transformador. Esta tendência procura demonstrar que é possível compreender a educação dentro da sociedade, com os seus determinantes e condicionantes, mas com a possibilidade de trabalhar pela sua democratização. Os teóricos desta tendência nem negam que a educação tem papel ativo na sociedade, nem recusam reconhecer os seus condicionantes histórico-sociais. Ao contrário, consideram a possibilidade de agir a partir dos próprios condicionantes históricos.

Dermeval Saviani é o principal representante desta tendência. Ele afirma que não será simples à educação, e aos educadores que a realizam, efetivar esse processo dentro da sociedade capitalista, pois que esta possui muitos ardis pelos quais ela se recompõe, tendo em vista não modificar-se, e nos alerta para essa dificuldade, dizendo o seguinte:

“O caminho é repleto de armadilhas, já que os mecanismos de adaptação acionados periodicamente a partir dos interesses dominantes podem ser confundidos com anseios da classe dominada. Para evitar esse risco, é necessário avançar no sentido de captar a natureza específica da educação, o que nos levará à compreensão das complexas mediações pelas quais se dá sua inserção contraditória na sociedade capitalista” (Escola e Democracia, São Paulo, Cortez/Autores Associados, 1987, p. 36).

Saviani nos indica a necessidade de cuidar daquilo que é específico da escola, para que esta venha a cumprir um papel de mediação num projeto democratizador. Diz ele:

“Do ponto de vista prático trata-se de retomar vigorosamente a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares. Lutar contra a marginalidade, através da escola, significa engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível nas condições históricas atuais. O papel de uma teoria crítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta, de modo a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes” (p.36).

Esta tendência, transformadora, que é crítica, recusa-se tanto ao otimismo ilusório, quanto ao pessimismo imobilizador. Por isso, propõe-se compreender a educação dentro de seus condicionantes e agir estrategicamente para a sua transformação. Propõe-se desvendar e utilizar-se das próprias contradições da sociedade, para trabalhar realisticamente (criticamente) pela sua transformação.

A nós, tendo compreendido essas tendências, cabe, filosoficamente (criticamente), descobrir qual a tendência que orientará o nosso trabalho. O que não podemos é ficar sem nenhuma delas, pois quando não pensamos, somos pensados e dirigidos por outros.

* Texto baseado no livro Filosofia da Educação, Coleção Magistério 2º Grau, Série Formação do Professor. Autor: Cipriano Carlos Luckesi. Cortez Editora, 1990. Elaborado pela Profa. Dra. Liriam Luri Y. Yanaze.

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